"Continuo a ser Presidente da Assembleia Nacional da Guiné-Bissau"
O Governo de iniciativa presidencial da Guiné-Bissau acusou o Presidente da Assembleia Nacional de tentativa de golpe de Estado. As acusações foram feitas por um dirigente do Madem-G15, da ala fiel ao Presidente Umaro Sissoco Emabaló, que justifica que Domingos Simões Pereira violou a Constituição do país “ao ter abordado a situação do Supremo Tribunal de Justiça durante a Comissão Permanente. José Monteiro anunciou que a coordenadora do Madem e 2.ª vice-presidente do Parlamento, Satu Camará, foi indigitada para o cargo, por considerar que Domingos Simões Pereira não tem condições para continuar à frente do parlamento guineense. Em entrevista à RFI, Domingos Simões Pereira, afirma que esta decisão é inexistente e que continua a ser o Presidente da Assembleia Nacional da Guiné-Bissau.
RFI: O Governo da Guiné-Bissau acusou o Presidente da Assembleia Nacional de tentativa de golpe de Estado. Como é que o senhor reage a estas acusações?
Domingos Simões Pereira, presidente da Assembleia Nacional da Guiné-Bissau: Nas duas deliberações que Comissão Permanente da Assembleia produziu, fizemos questão de dar os artigos- tanto da Constituição como do Regimento, da Assembleia e das leis- que outorgam à Assembleia competência para criar condições de funcionamento de outras instâncias. Portanto, se isso equivale a uma usurpação de competências, ao ponto de poder ser considerado um atentado à ordem e ao ponto de provocar essa tentativa de substituição do presidente da Assembleia- eu não sei que sítio estou.
O dirigente do Madem-G15, Joaquim José Monteiro, afirma que o senhor não tem condições para continuar no cargo de presidente da Assembleia Nacional Popular porque violou a Constituição do país ao ter abordado a situação no Supremo Tribunal de Justiça na reunião da Comissão Permanente. Entretanto, foi indigitada para o cargo Satu Camará, vice-presidente da Assembleia. Que validade tem esta decisão, uma vez que vem de uma ala do Madem- G15 que apoia o presidente da República, Umaru Sissoko Embaló?
Eu penso que essa introdução diz tudo. Revela o ambiente em que vivemos no país, a intenção do chefe de Estado, das pessoas que o acompanham- de se acaparar de todos os poderes- legislativo e judicial. Ou as instâncias se alinham com aquilo que é a intenção e a vontade do Presidente, ou são objectos de assalto pelas próprias forças que deviam ser os garantes da ordem e da paz social. Permita-me começar por dizer que a Comissão Permanente é constituída por deputados de vários partidos. Estamos a falar de 15 e todos estiveram presentes. Para além disso, com uma assistência jurídica que pediu a análise de todos os instrumentos e reconheceu que não é só uma questão de vocação da Assembleia, mas que lhe é reservado essa competência a título exclusivo. Só a Assembleia tem competência para dotar os órgãos dos instrumentos de que necessitam para poder realmente cumprir a sua missão.
Estamos a falar de um país onde o Presidente da República, depois de ter proclamado a dissolução do Parlamento e a formação de um Governo de iniciativa presidencial- situações que não estão previstos na Constituição, marca eleições para o dia 24 de Novembro, sendo que o órgão responsável pela recepção das candidaturas- que é o Supremo Tribunal de Justiça- não tem presidente.
Mesmo depois de ter sido dissolvida a Assembleia Nacional, a Comissão Permanente continua a ter legitimidade para abordar essas questões que acaba de escrever?
Absolutamente. Está claramente estabelecida- tanto no Regimento da Assembleia como na Constituição- que, em caso de dissolução da Assembleia Nacional Popular, esse órgão de soberania funciona através da sua Comissão Permanente.
Deu o exemplo do Supremo Tribunal de Justiça da Guiné-Bissau, mas há também a questão da Comissão Nacional de Eleições que está caduca desde 2022…
A Comissão Permanente da Assembleia também quis abordar a questão da CNE e, pode estar segura que, a razão do Presidente pretender a minha destituição e falar a investidura de uma outra Presidente tem a ver exactamente com isso.
Portanto, o Presidente considera que já tinha dado um golpe na Assembleia, outro golpe no Supremo Tribunal de Justiça e tinha o controlo desses dois órgãos. Quando reunimos a Comissão Permanente e damos sinal de estar a propor uma solução que permita, por via do consenso de todos os partidos representados na Assembleia, encontrar uma solução negociada, repondo a legalidade desses órgãos. O efeito do golpe que ele tinha dado e que estaria posta em causa, e por isso não pode ser.
O senhor vai acatar esta decisão? O que pensa fazer?
Essa decisão é inexistente e, portanto, o Presidente vai ter que continuar a utilizar as suas milícias- pessoas que no calar da noite vão perseguindo e ameaçando as pessoas, porque nós vamos fazer o nosso trabalho. A Comissão Permanente tomou um conjunto de decisões e essas decisões devem merecer o tratamento das comissões especializadas e nós vamos continuar a fazer o nosso trabalho. Ele [chefe de Estado] tem duas opções: ou ignora ou nos prende a todos. Enquanto tivermos capacidade para trabalhar, vamos continuar a trabalhar.
O senhor continua a ser o Presidente da Assembleia Nacional da Guiné-Bissau?
Para todos aqueles que respeitam a nossa Constituição- e sei que é praticamente todo o povo guineense- continuo [a ser o Presidente da Assembleia Nacional da Guiné-Bissau]. Certamente que continuo, uma vez que esta decisão é uma aberração. Devia haver vergonha das pessoas por, inclusive, mencionarem isso.
Na semana passada, afirmou que retomar os trabalhos na Assembleia Nacional era também, de certa forma, estender a mão ao chefe de Estado para a retoma do diálogo. Ainda há ainda a possibilidade de um diálogo?
Eu sempre apostei nisso e penso que a declaração conjunta -que foi assinada por vários partidos- demonstra que há necessidade de chamar o Presidente da República ao diálogo. Infelizmente, o Presidente não acredita no diálogo e não acredita na partilha do poder. O Presidente define o regime em que está inserido como um regime no qual ele tem competências absolutas e, em função disso, obriga todos os outros órgãos a fazer exactamente isso.
Hoje tem os olhos postos na questão da sua reeleição. Todavia, sabe que o povo não o acompanha, que não será por via do voto popular, e tem que silenciar todas as vozes que dizem que é preciso criar condições de transparência, de justiça, para que a ida às urnas represente a expressão livre da vontade do povo. E o Presidente teme, infelizmente, essa realidade acredita.
Pensa que estão reunidas as condições para serem realizadas eleições no dia 24 de Novembro?
Não compete a mim fazer esse tipo de pronunciamento. O que me compete, enquanto Presidente da Assembleia Nacional Popular, é trabalhar com os instrumentos que estão ao nosso dispor, nomeadamente neste caso a Comissão Permanente, contribuindo para que essas condições estejam criadas.
Nas decisões que foram tomadas pela Comissão, aguardava-se que o Presidente estivesse disponível para receber uma delegação da Comissão Permanente, chefiada pelo Presidente da Assembleia, para lhe transmitir quais os caminhos que entendemos serem viáveis para uma ida às urnas numa condição de tranquilidade.
Porém, o senhor foi "destituído" do cargo de presidente do Parlamento, foram impedidos de entrar na Assembleia Nacional… o que é vão fazer? Vão apelar à comunidade internacional, estão previstas manifestações?
Tudo o que diz está previsto na lei e está a ser considerado pela Comissão Permanente, pelos partidos que sustentam a Assembleia Nacional Popular. É importante dizer que a Assembleia Nacional Popular não tem, obrigatoriamente, que se reunir na sua sede para ser Assembleia. Mencionou aqui um aspeto que é fundamental. Tudo isto só está a acontecer porque o povo guineense ainda não se mobiliza para confrontar quem tenta pôr em causa o seu direito a viver em paz e a viver em democracia.
Todos sabemos que esta confusão é armada depois de uma semana que foi dominada pela questão do narcotráfico. Continuamos a ter um avião estacionado no aeroporto, um avião que transportou mais de 2500 quilos de droga e, portanto, aproveitam tudo isto para fazer um grande rebuliço e tentar desviar a atenção das pessoas para assuntos que não são realmente de qualquer tipo de interesse.
O que o povo guineense questiona é como isto chega a acontecer e até este momento não há indicação de nenhuma apreensão local. Aliás, os rumores que circulam, se são verdade eu não sei, é que o principal agente que terá denunciado a situação se encontra isolado e teme pela sua própria segurança.
Que comentário lhe merece a postura da comunidade internacional relativamente ao que se passa na Guiné-Bissau? Deveria haver uma maior intervenção?
Absolutamente. A Guiné-Bissau pertence a várias organizações regionais e internacionais e devia ser correspondido com assistências necessárias para poder ajudar no combate a esses cartéis e estruturas do crime organizado. O povo guineense merece viver em paz.
Pondera, por exemplo, o envio de uma missão para se criarem condições para o diálogo no país?
A CEDEAO- A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental- colocou na Guiné-Bissau uma força de intervenção e essa força foi anunciada como uma força de estabilização do país, para que as reformas pudessem ser executadas muito rapidamente. O Presidente tratou de inventar duas tentativas de golpes de Estado e, por via dessas tentativas, convencer os países que sustentam essa estrutura a mudar a missão desta força, transformando-a numa força de protecção do Presidente da República.
Temos várias cimeiras, tanto da CEDEAO, União Africana e, neste momento, está a acontecer a Assembleia Geral das Nações Unidas, à margem da qual esteve reunida ontem a CPLP-Comunidade dos países de Língua Portuguesa. Várias instâncias que tinham a obrigação de tomar medidas no sentido de confrontar tudo aquilo que não contribui para a estabilidade, para a aplicação dos princípios democráticos e para que a vontade do povo seja respeitada.
Enquanto essas organizações se contentam exclusivamente em ouvir aquilo que são os relatos e os discursos oficiais dos Presidentes da República afastam-se do povo. Infelizmente, este vazio vai caracterizando o funcionamento da maioria das organizações internacionais.
A Guiné-Bissau assinala hoje 51 anos de independência. Qual é o balanço que faz?
Eu penso que o facto de nós termos falado 99% do tempo sobre a questão do atentado à soberania do Estado- que está a acontecer no país- da forma como o Presidente pretende acaparar-se de todos os poderes e de um secretário de Estado que acha que tem competência de entrar na Assembleia Nacional Popular e instalar uma presidente da Assembleia, demonstra claramente que, infelizmente, aquilo que motivou a nossa luta de libertação e a proclamação da independência, ocorrida há 51 anos, continuam a ser desafios presentes.
Amílcar Cabral e os seus companheiros deram tudo para este país, mostraram-nos o caminho, mas infelizmente, temos que continuar a inspirar-nos da bravura deles, da clarividência do seu pensamento, para renovar as nossas forças e enfrentarmos- agora- este mesmo desafio.
Devíamos, ao assinalar os 51 anos, assumir uma postura de respeito da nossa Constituição, respeito das nossas leis e reconhecimento de que o povo é soberano e quem são os seus representantes. Uma vez feita a escolha por parte do povo, devíamos concentrar toda a nossa capacidade e toda a nossa energia a implementar programas de governação que melhorem a condição de vida da nossa população.
Infelizmente estamos capturados por instâncias do crime organizado e está a levar muito tempo até que o nosso povo compreenda que a única solução é organizarmo-nos para fazer face a essa situação, contando obviamente com o apoio dos nossos amigos- a nível internacional- que não devem ficar expectantes, devem compreender a natureza dos problemas que enfrentamos e colocar a nossa disposição para podermos, em conjunto, transformar a Guiné-Bissau numa pátria de paz e que possa auferir o desenvolvimento.